Ao pedir o coração de Dom Pedro 1º emprestado para as festas dos 200 anos da Independência, o governo brasileiro criou constrangimento entre os guardiões da relíquia em Portugal.
Na Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, na cidade do Porto, em cuja igreja o coração do ex-imperador do Brasil está guardado desde 1835, foge-se do assunto.
O mesmo ocorre na Câmara Municipal, sede administrativa da cidade. Confirma-se que "houve contatos para solicitar que o coração viajasse ao Brasil", mas se evita ir além de declarações protocolares.
O coração de Dom Pedro 1º — ou Dom Pedro 4º, para os portugueses — é um dos maiores orgulhos do Porto. Herói local, há um monumento em homenagem ao ex-imperador do Brasil na praça da Liberdade, na avenida dos Aliados.
Na estátua em bronze de 10 metros de altura, Dom Pedro está montado em um cavalo, com a Câmara Municipal ao fundo. Ele se tornou ícone da liberdade ao comandar a vitória dos liberais contra os absolutistas (liderados pelo irmão Dom Miguel) em uma guerra civil ocorrida entre 1832 e 1834. Na ocasião, o Porto ficou ao lado de Dom Pedro — e resistiu ao cerco promovido pelas forças de Dom Miguel durante 13 meses. É por causa dessa vitória que, até hoje, a cidade intitula-se "invicta".
Em agradecimento à luta dos portuenses, Dom Pedro expressou em testamento o desejo de que seu coração ficasse guardado na cidade — os ossos deveriam ser encaminhados ao Brasil, o que ocorreria apenas em 1972, por ocasião dos 150 anos da Independência. Embora o ex-imperador não houvesse mencionado a Igreja da Lapa como depositária de seu órgão vital, decidiu-se mantê-lo ali a pedido da filha, a rainha de Portugal Dona Maria — era naquela igreja que o pai assistia às missas militares.
Com tanta história —e memória afetiva — envolvendo Dom Pedro e o Porto, é compreensível o apego das autoridades portuenses pelo coração do homem a quem têm na conta de maior dos heróis.
E, embora prefiram manter-se em elegante silêncio, tudo indica que há, entre as autoridades, um temor que o cineasta português Miguel Gonçalves Mendes expressa com todas as palavras: "Tenho medo que percam o coração", ele diz. "Entendo o simbolismo, foi Dom Pedro quem proclamou a independência do Brasil.
Mas é um governo que deixa incendiar o Museu Nacional, a Cinemateca, que não cuida dos seus bens mais preciosos, deixa detonar tudo."
O Ministério das Relações Exteriores do Brasil confirmou ao TAB que o "Itamaraty iniciou conversações com autoridades portuguesas para examinar a possibilidade de traslado temporário do coração de Dom Pedro 1º ao Brasil, no contexto das celebrações do bicentenário da Independência". Informou que as "conversações encontram-se em andamento" com a Câmara e a Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, mas não respondeu à pergunta sobre os planos para o coração — se será exposto em alguma cerimônia pública ou privada, por exemplo.
Apesar do pedido oficial, o assunto ainda não entrou na pauta dos políticos da Invicta. "Essa discussão não existiu no contexto dos órgãos autárquicos", disse ao TAB Susana Constante Pereira, deputada do partido Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal do Porto. Na Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, as solicitações de informações sobre o assunto são postergadas por motivos que vão de falta de tempo a férias dos responsáveis pela instituição. O historiador Francisco Ribeiro da Silva, mesário da Cultura da Irmandade, negou o pedido de entrevista do TAB categoricamente.
Francisco Ribeiro da Silva é o autor do texto fixado no mausoléu de Dom Pedro na igreja da Lapa. Nele, o historiador ressalta a "recíproca e profunda empatia que levou o rei de Portugal e imperador do Brasil a doar o coração à cidade do Porto". Embora se recuse a comentar o assunto publicamente, é certo que a ideia de fazer a relíquia atravessar o oceano não soa razoável ao mesário. Em 2013, ele havia manifestado incômodo diante do pedido de um grupo de cientistas brasileiros para que o coração fosse enviado ao Brasil, para estudos.
Um dos cientistas envolvidos no projeto foi o patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A intenção de Saldiva era extrair uma amostra milimétrica do órgão para investigar a causa da morte do antigo imperador (doença de Chagas, tuberculose ou doença cardíaca são as hipóteses mais consideradas).
Na época, Francisco Ribeiro da Silva relatou à agência Lusa os temores de que a empreitada danificasse o órgão. "É frágil e tem muitos anos. As operações são muito complexas, tudo isso agita muito e temos receio de um mau resultado." O projeto de Paulo Saldiva não prosperou; mas, diante da possibilidade de o coração estar no Brasil em breve, ele alimenta a ideia de tentar, novamente, proceder à retirada da amostra para estudo.
"Teríamos condições de fazer o exame sem destruição nenhuma do órgão, com agulhas de biópsia", afirma.
Embora tema que as comemorações pelo bicentenário da sirvam de plataforma política para o atual governo, Paulo Saldiva não considera que o traslado ponha em risco a integridade física do órgão.
"Transporte de coração é o que acontece em todo programa mundial de transplante." O fato de o material ter quase dois séculos, segundo ele, não o torna frágil a ponto de dever permanecer armazenado.
"Não é uma operação cara e, teoricamente, não envolve riscos. As companhias aéreas têm aeronaves com compartimentos específicos para o transporte de órgãos."
Numa rara manifestação sobre o assunto para a imprensa portuguesa, o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, disse não ter pressa para tratar do assunto.
Diante de palavras como incêndios, perdas, agulhas e extrações, talvez ele seja aconselhado a adiar a decisão para os 300 anos da Independência.
Por; Adriana Negreiros/ Fotos Lira Neto.UOL
Colaboração para o TAB, do Porto (Portugal)