Em uma época em que existia jornal povão...e muito repórter cara de pau!!!
Na madrugada de 28 de agosto de 1984, em Sampa, o telefone tocou alto em um sobrado do Tremembé, zona norte paulistana. O fotógrafo Tarcísio Motta foi acordado pelos policiais do 6º Distrito Policial, no Cambuci: “É melhor você vir para cá. Tem coisa boa para você”. Apesar do susto, Motta não se surpreendeu. Acostumado a receber ligações de policiais relatando fatos interessantes para o jornal, trocou calmamente o pijama pela jaqueta e partiu para o Centro. Notícias em primeira mão eram fruto do bom relacionamento que o jornalista sempre mantivera com os oficiais. Durante muito tempo, PMS deixavam em suas mãos um rádio de uso exclusivo da corporação, para que ele pudesse acompanhar em tempo real as ocorrências da cidade. Motta até tinha um codinome, usado quando os tiras queriam se comunicar com o fotógrafo: PM Bode.
Naquele dia, entretanto, ele não imaginava que estaria por presenciar o surgimento de um novo mito popular paulistano.
Chegando à delegacia, o fotógrafo percebeu que o caso poderia render muito mais que uma simples nota na coluna policial. Uma estranha aventura sexual envolvendo um mendigo e uma psicóloga havia ocorrido poucas horas antes, em frente à fila do sopão dos indigentes, no Cambuci. Quando a dupla já estava nos finalmente, rodeada por curiosos, uma viatura abordou o Fiat da mulher. Alterada, ela ameaçou os soldados e ganhou uma carona grátis no camburão até o distrito - acompanhada, claro, por seu parceiro-relâmpago. Na hora em que Motta apareceu, o boletim de ocorrência já havia sido preenchido e o marido da psicóloga já havia chegado no xadrez, mas os dois envolvidos ainda permaneciam trancados em uma sala. O delegado esperava somente a chegada do fotógrafo para liberar a mulher, cuja fiança havia sido paga pelo marido. Lá, o profissional se esbaldou com o material da inusitada história, clicando um sorridente e incrédulo indigente e uma transtornada psicóloga. O mendigo também escapou em seguida: solidários, alguns policiais da delegacia fizeram uma vaquinha e pagaram sua liberdade.
No dia seguinte, Motta levou o relato a Ebrahim Ramadan. “Tenho uma história interessante”, disse, para em seguida começar a descrever o ocorrido ao editor. O chefe se empolgou.
- Como é que era esse cara?
- Era negro, magro, com o biotipo de jogador de futebol...
- Da altura do Pelé?
- Não, era um pouco mais alto.
- Tinha a cara do Pelé?
- Não muito, mais ou menos...
- Tinha alguma coisa parecida com o Pelé?
- Era negro também.
- Então vai ser Pelezão.
Ramadan havia acabado de transformar o mendigo Paulo Gonçalves, doravante denominado apenas Pelezão, no mais novo ídolo das madames. PSICÓLOGA PEGA NA MARRA E VIOLENTA O INDIGENTE. Essa foi a manchete que tomou as bancas no dia 29 e deflagrou sua consagração. O jornal contou a história assim:
Mesmo sendo devoto de Nossa Senhora Aparecida, Pelezão, ou Paulo Gonçalves, não poderia imaginar que naquela madrugada friorenta de 27 para 28 de agosto um milagre iria acontecer. Tiritando de frio, com o estômago totalmente vazio, desempregado, sem documentos e alguns minguados trocados no bolso, ele se dirigiu ao Cetren - Central de Triagem e Encaminhamentos, no bairro do Cambuci - em busca de um cantinho quente para dormir e algo quente para arrumar seu estômago.
A sopa não veio. Em seu lugar apareceu a psicóloga D.M.Z., uma “moça muito bonita, bem fina e de família portuguesa”, segundo ele. Saída de uma sessão espírita ali perto, a psicóloga estacionou o seu Fiat branco de placa UF-3990 no meio-fio da Rua Oto de Alencar e depois de passar duas vezes pela fila, chegou bem pertinho de Paulo e convidou-o para ir até seu carro.
“Me deu alguns beijos, me roçou a orelha, me chamou de amorzinho e completou dizendo: você é meu Pelezão”. A transação demorou cerca de 45 minutos, tempo suficiente, segundo Paulo, para um “chega mais tranquilo”. Afinal, conta ele, “já fazia uns 20 dias que eu estava só na reserva. Aí surgiu uma oportunidade e resolvi botar meu time em campo rapidinho”.
A vendagem saltou de uma média de 75 mil exemplares para 80 mil. Percebendo que o público havia se maravilhado com a história, o NP levantou a bola do novo herói nas edições seguintes. A jogada deu certo: o ex-mendigo passou a ser reconhecido nas ruas e sua fama não parava de crescer, como comprovava a manchete do dia 31, que anunciava: MULHERES PARAM PELEZÃO PARA PEDIR AUTÓGRAFO.
Agora, a vendagem já atingia 85 mil exemplares. Mantido pelo jornal no hotel Ben Hur, no Centro, Pelezão não precisava fazer esforço para presentear o Notícias Populares com novas manchetes. Em 3 de setembro de 1984, o operário baiano Agamenon Carvalho apresentava aos leitores a “melo do Pelezão”. Na foto que ilustrava a matéria, Paulo parecia pouco animado em ouvir o músico amador cantar seu tema. O jornal dizia que Pelezão “curtiu adoidado” a homenagem, mas explicava que ele era adepto de “ritmos mais lentos”.
O segurança Alfredo Aurélio Pereira também quis aparecer e compôs uma marcinha de Carnaval para o ídolo. Um terceiro artista rendeu suas homenagens a Pelezão: José Antônio Cremasco, apresentado pelo NP como “autor de várias músicas infantis e sátiras políticas do mais alto nível”, também usou a nova celebridade como inspiração para uma nova obra:
Hei meu Brasil, Brasil de campeão
Primeiro foi com Close, agora é com Pelezão
Hei meu Brasil, Brasil de tradição
Terra onde dá de tudo mas dá mais é apelação
A exposição nas páginas do NP valeu até um emprego para o ex-indigente. Paulo foi contratado como uma espécie de porteiro de luxo da cantina C’Que Sabe, no Bixiga, centro de São Paulo, onde iria recepcionar os clientes, manobrar carros e atrair novos fregueses. O NP proclamava: Pelezão era o novo “rei da noite”. E o monarca seguia recebendo convites inesperados. A revista Clube dos Homens queria retratar Pelezão nu para tentar descobrir seu verdadeiro segredo - afinal, Paulo fazia o gênero “pele e osso” e sua fisionomia estava longe de lembrar algum príncipe etíope.
Logo a produção do Perdidos na Noite, de Fausto Silva, na Band, convidava o novo símbolo sexual para participar do programa. Depois de causar comoção em sua chegada ao teatro Záccaro, Pelezão foi entrevistado pelos impagáveis Tatá e Escova e até cantou no palco. A música escolhida era de Nelson Gonçalves, ídolo do ex-indigente. Para desespero de suas fãs, Paulo até arrumou uma noiva. Maria Aparecida Pontes não era nenhuma miss, mas Pelezão garantia que sua pretendente era uma “copeira conceituadíssima numa agência de viagens internacionais”.
Ao fim de 11 manchetes e 14 chamadas de capa, o NP se despedia de Paulo em 24 de setembro de Paulo em 24 de setembro de 1984. Após um mês de mordomias, o inevitável aconteceu: Pelezão começaria em seu novo emprego no dia seguinte. O simpático vagabundo havia deixado apenas boas lembranças para a redação - e um imenso sentimento de gratidão para o departamento comercial - quando voltou a ser notícia meses depois. Em 12 de janeiro de 1985, o NP lamentava: PELEZÃO VOLTA A SER MENDIGO. A saudade da sarjeta batera mais forte, e Paulo Gonçalves deixava as regalias para voltar aos braços dos amigos. Todos acreditavam que o futuro do homem já estava selado. O destino, todavia, ainda tinha quinze minutos reservados para o indigente.
O mês de julho de 1985 começava quando veio a grande notícia. Pelezão, o homem que um dia tivera as madames da cidade a seus pés, foi detido na Santa Casa de Misericórdia por furtar um radinho de pilha de uma enfermeira que dormia no berçário. Isso tudo no dia em que completava 53 anos. Júlio Saraiva foi conferir a história e não resistiu. “Acabou-se o que era doce”, sentenciou o poeta. A manchete de 11 de julho não amaciava com o indigente: PELEZÃO PRESO ROUBANDO DENTRO DA SANTA CASA. A reportagem constatava que o ex-símbolo sexual tinha em sua trouxa apenas um par de sapatos, uma calça, duas camisas e um paletó surrado. O jornal aparecia querer ajudar o velho ídolo, mas encontrava um obstáculo: trancafiado em uma cela no 3º DP, Pelezão não poderia render mais manchetes. O NP, então, tratou de inventar algumas.
Assim, o improvável virava realidade nas páginas do Notícias Populares. A manchete de 12 de julho, PSICÓLOGA FOI MATAR SAUDADE DE PELEZÃO, já dizia tudo. Em reportagem assinada por João Capistrano, o jornal relatava que uma mulher havia aparecido no xilindró para ver Pelezão; quando o investigador pediu a ela que se identificasse, a visitante se irritou e fugiu. O NP concluía que a misteriosa dama era a psicóloga que, um ano antes, tirara o indigente da fila do sopão e o alimentara com luxúria. Os leitores não sabiam, mas a própria assinatura da reportagem denunciava a farsa. João Capistrano era o pseudônimo de um dos jornalistas da casa, usado apenas em textos, digamos, inverídicos. Como poucos conheciam essa chancela de lorota, o caso seguiu em frente. Em 14 de julho de 1985, foi só caprichar na caligrafia. O jornal fabricava um bilhete manuscrito, que apareceria com enorme destaque na primeira página.
Meu pretão querido
Nessas noites de inverno eu me recordo de você.
E sinto falta do seu corpo ardente, quase fervendo.
Aí, meu pretão, eu não vou te esquecer nunca.
Vai fazer um ano.
Você sabe muito bem quem sou.
Não vejo a hora de você sair, meu Pelezão.
Tamanha prova de carinho não poderia ter dado outro resultado, como atestava a colossal manchete daquele dia: DECLARAÇÃO DE AMOR FAZ PELEZÃO CHORAR NO XADREZ. João Capistrano, claro, era quem trazia os detalhes exclusivos. Entregue por um motorista de táxi - o carro era um Gol azul-marinho -, a declaração de amor veio acompanhada de salgadinhos. Na foto, um emocionado Pelezão parecia não acreditar no que estava acontecendo. A legenda era cruel: “As algemas atrapalham um pouco na hora de abrir os presentes”. No dia seguinte, entretanto o jornal já não escalava Capistrano para cobrir a hospedagem de Paulo Gonçalves na cadeia. Terminava o penúltimo capítulo da novela.
As derradeiras aparições do indigente no jornal que lhe dera casa, comida e roupa lavada aconteceram em outubro de 1986. No dia 6, com tristeza, o Notícias Populares revelava: PELEZÃO É ENCANADO AO ROUBAR CASA NO IPIRANGA. O mendigo invadira a casa de um professor e afanara um aparelho telefônico e algumas peças de roupa. “Deve ser praga da psicóloga”, afirmou Pelezão. A última notícia do antigo herói viria no dia seguinte: PELEZÃO ESTÁ RECOLHIDO NO PRESÍDIO DO HIPÓDROMO. A reportagem revelava que Pelezão estava com uma doença venérea. Ninguém sabe como a epopéia terminou. Mas as especulações incluem dramas e tragédias.
Trecho retirado do livro “Nada Mais Que a Verdade- A Extraordinária História do Jornal Notícias Populares” de autoria de Celso Campos Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Leopiani e Maik Rene Lima, Carrenho Editorial, publicado originalmente em 2002.